13.8.09

Desesperança II


Como fazer?
Como chegar até ela?
Tão linda, naquela palidez mortiça!
As olheiras só realçam o verde dos olhos, e a magreza, uma aura de fatalidade que me enlouquece!
Será que ela sabe?
Parece que nem nota as pessoas ao redor, médicos, enfermeiras, visitas, flores.
E sua imobilidade torna-a frágil, traz a minha violência à tona.
Eu fico horas ali, olhando para ela, só controlando a vontade de machucá-la, de ver seu sangue escorrer, de quebrar os ossos do seu rosto com minhas próprias mãos, louco para ouvir seus gritos e estalos, e ver suas lágrimas.
As lágrimas que teriam o brilho de diamantes, e se misturariam ao sangue, e se transformariam em rubis...
Seus olhos parados, fitando o teto. Duas esmeraldas opacas, desesperançadas.
Coma.
Não, ela não sabe.
Hoje, faz cinqüenta anos que ela morreu.
Seu espectro ainda está naquele quarto, na mesma cama desativada, formando uma eterna mancha escura no colchão esburacado.
Sua alma presa ao presente, sem entender ou sentir.
Seu corpo já deve ser só ossos.
Anônimo.
Silencioso.
Branco e casto.
Noiva.
Sua voz, calada, é só eco na minha memória.
Ela já foi carne.
Hoje, é sombra.
E eu estou aqui, esperando.
Esperando que ela volte.
Escrevendo e escrevendo.
As pilhas de papel se acumulando a minha volta, a caneta arranhando, ruído interminável, insuportável, ensurdecedor.
Tenho todo o tempo do mundo.
Tenho a eternidade.
Posso escrever para sempre.
Quando ela acordar, saberá.
Quando ela acordar, entenderá.
Nada mais de solidão, dor ou medo.
Não ouvirei mais os gritos dos aflitos e nem verei mais os dedos acusadores apontando pra mim.
Serei livre.
Ouvirei, finalmente, as trombetas do paraíso.
Não verei mais o desfile dos infelizes, perdidos, mutilados.
Não terei mais que sentir o olhar indiferente dela, pois ela será luz novamente, benevolência e doçura.
Farei com que saibam que ela é linda, e não putrefata.
Farei com que entendam o que é o amor, irradiado direto do coração de um anjo.
O que é brancura comparada à beleza irradiada das asas dela.
Perdão e paraíso.
O canto dos anjos soará desafinado quando sua voz soar pelos céus, aos gritos, agonia e dor.
Ela será minha, então.
E eu quebrarei todos os seus ossos novamente, um a um.
Sentirei os estalos, em regozijo.
Serei um ser completo somente quando sentir os respingos de sangue em meu rosto, e enterrarei os meus braços no ventre aberto.
Espalharei as vísceras pelo chão, e pintarei as paredes de rubro.
Comerei o coração ainda pulsante
E não haverá mais agonia em mim.


Roberta Nunes
29/09/2008
Adaptado de “Desesperança”, conto escrito em 2005 para o grupo de discussão literária on-line “Cryacontos”.

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