16.5.08

Saudade


Ah, sim!
A pústula!
Nojenta, cheia de pus esverdeado e mau-cheiro.
Uma coisa horrível de se ver.
Uma cicatriz mal costurada que, ao menor movimento, cospe podridão.
É assim que te vejo hoje.
E percebo como é pervertido o prazer de lamber essa ferida, travestida de amor.
As formigas já invadindo nossa cama, e as moscas, ah, as moscas! tão fiéis aos cadáveres em decomposição, fazendo sinfonias ao nosso redor.
Larvas gordas e brilhantes nadando no nosso suor azedo.
Baratas cascudas limpando os cantos das nossas bocas babosas, restos de vinho e beijo.
Restos de restos.
Fios de cabelos nas fronhas imundas, cheias de manchas mitológicas.
Olho em volta e vejo a degradação: paredes descascadas e mofadas, tapetes rotos, um prato com restos de refeições debutantes.
Insetos e você.
Aranhas se fartando...
"Who wants to live forever?
Who dares to love forever?
When love must die?"*
Não quero ser enterrado vivo num túmulo que nem é meu.
Nessa lápide, meu nome não está escrito, e as datas não correspondem ao meu mapa astral (que eu nunca fiz).
O som oco dos seus ossos descalcificados, o rangido das suas articulações!
E os livros desfolhados, jogados sobra a nossa cama, uma colcha de núpcias.
E as folhas secas das árvores do cemitério, que é nosso vizinho mais querido, invadem nosso universo de gemidos e gritos agonizantes e revirar de olhos e arrastar de correntes.
Beijo pois, pela última vez, essa boca desdentada.
E sinto, pela última vez, esse hálito morto invadir meus pulmões.

Roberta Nunes
10/05/2008

* "Quem quer viver para sempre?
Quem ousa amar para sempre?
Quando o amor dever morrer?"
Who wants to live forever - Queen

RECOLHIMENTO
Charles Baudelaire

Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta.
Reclamavas a Tarde; eis que ela vem descendo:
sobre a cidade um véu de sombras se projeta,
a alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
sob o flagelo do Prazer, algoz horrendo,
remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta,
dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo deles.

Vem ver curvarem-se os Anos passados
nas varandas do céu, em trajes antiquados;
surgir das águas a Saudade sorridente;
O Sol que numa arcada agoniza e se aninha,
e, qual longo sudário a arrastar-se no Oriente,
ouve, querida, a doce Noite que caminha.

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